segunda-feira, 23 de março de 2020

Escutatória - Rubem Alves



Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de
escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a
ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém
vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não
ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter
filosofia nenhuma".
Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as
coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o
Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é
preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a
gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor,
sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se
aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse
ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de
nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos
estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os
índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo
silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano,
ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio.
Expulsando todas as ideias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do
pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.
Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande
desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele
julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que
o outro falou.
Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei
em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou.
Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você
terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado".
Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu
já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso
pensar sobre o que você falou".
Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma
bofetada.
O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo
que você falou". E assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de
pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir
coisas que não ouvia.
Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve
nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.
A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do
mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e
ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia,
ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.
Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância
de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num
contraponto.


*Ouvir está muito ligado à função do 5º chakra. Para nos tornarmos um bom agente (instrumento) de cura precisamos desenvolver esta bela arte de aprender a ouvir as pessoas, principalmente as coisas não-ditas...

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